19/01/2008

Musicalidade - Luís Miguel Oliveira

Polifonias é um filme construído, de maneira a fazer justiça ao título, em tom "polifónico". No centro, como o título também indica, estão a figura e a obra de Michel Giacometti, sem que Polifonias se esgote (muito longe disso) na sua simples evocação. Esta está presente, claro, guiada pela vontade de preservar e de afirmar a importância do trabalho de Giacometti para a cultura popular portuguesa: como fica expresso no depoimento de José Mário Branco, foi graças ao seu labor que um passado pôde gerar um futuro, e que toda uma herança cultural aparentemente condenada a secar acabou, afinal, por frutificar. Em parte, Pierre-Marie Goulet também desenvolve no seu filme um trabalho orientado pela ideia de recolha: trata-se de partir em busca dos indícios da passagem de Giacometti por Portugal, em particular pelo Alentejo, e verificar tudo aquilo que ficou como marca indelével dessa passagem. A profunda identificação estabelecida entre ele e as gentes alentejanas ("o Michel", como se lhe refere o idoso que conta à câmara a chegada, em 1959, de Giacometti) não será, nesse sentido, uma das marcas menos importantes.

Mas em Polifonias perpassa também a ideia de um "mistério" subjacente à figura de Giacometti e a essa sua identificação com um povo e com uma terra. De certa forma, é em relação a esse mistério que o filme de Pierre-Marie Goulet avança, procurando perceber por que motivo foi um Corso capaz de sentir um tal encantamento e de levar a cabo uma tal integração na paisagem (humana, cultural e geográfica) do Alentejo. Aí, Polifonias traz à memória o Citizen Langlois de Cozarinsky, que "lia" a obra do fundador da Cinemateca Francesa como uma incessante tentativa de recuperação e de reencontro com as suas raízes. E quando Pierre-Marie Goulet confronta o "cante" alentejano com as polifonias corsas, tornando imediatamente perceptíveis, para todos os envolvidos (dos intervenientes no filme aos espectadores), as subterrâneas relações e equivalências entre uma coisa e outra, essa ideia torna-se perfeitamente clara: ao salvar as raízes dos outros, Giacometti estava, mais do que a apropriar-se, a reconhecer nelas as suas próprias raízes

É nesse processo que Polifonias integra na sua estrutura a ideia de "polifonia". Porque se transforma num filme que é tanto sobre Giacometti como sobre a noção de a "raízes", sobre o povo, sobre a terra, e sobre a música, e porque todos estes elementos continuam a ter uma ressonância própria mesmo quando se fundem uns nos outros. E ainda porque a tudo isso corresponde uma organização formal marcada por uma musicalidade intrínseca, tanto na sequência (veja-se, por exemplo, o plano da rua que se repete como "leit-motiv" visual) como muitas vezes no próprio interior do plano (a imagem, também repetida, da mulher a olhar a paisagem, com o travelling que a acompanha seguir o ritmo do monólogo na banda sonora). Por tudo isso, Polifonias é um filme belíssimo.
Luis Miguel Oliveira
Folha da Cinemateca

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