É sexta-feira à noite, chove. Sextas e sábados à noite, as ruas, os centros comerciais, os bares, enchem-se de uma multidão ansiosa tomada do horror do vazio, procurando fazer qualquer coisa que não seja não fazer coisa nenhuma. Por isso, nas noites de sexta e sábado, alguns de nós se refugiam em sítios inacessíveis de si mesmos. Numa destas sextas-feiras à noite esse sítio era uma pequena sala de cinema na cave do Teatro Rivoli.
O filme traça o retrato breve de um forasteiro solitário que, "como nos westerns" chega um dia a um país lentíssimo e, munido de um caderno e um gravador, vem acordar a voz rude e silenciosa do seu povo, "fio longínquo (de uma) fonte subterrânea que atravessa tempos infinitos". Outro forasteiro, Pierre-Marie Goulet, segue essa voz, "pausada e inquieta estrela de pastor, respondida pelo grito do alto – clarão de trovoada que lentamente se suaviza nas cores do entardecer; e esse grito feito canto inesperado repercute-se no coro plano dos baixos, firme e tranquilo como uma certeza". E de repente, o milagre acontece. A voz ganha um rosto múltiplo e humano, fitando-nos com tal transparência e tal verdade que temos de baixar os olhos com vergonha de todas as nossas infidelidades. E quando os erguemos de novo é o nosso próprio rosto e inalterado que está diante de nós.
De sítios assim, como de certos poemas, voltamos pessoas melhores, em coincidente e literal paz com o mundo, religados de novo a tudo, como um cordão umbilical que nos prendesse a alguma origem perfeita. E, por um momento, somos enfim, do nosso exacto tamanho.
Manuel António Pina
in Visão